sábado, 5 de julho de 2008

Na BR-3

Por Raphael Cassou
“A gente corre na BR-3
A gente morre na BR-3
Há um foguete
Rasgando o céu, cruzando o espaço
E um Jesus Cristo feito em aço
Crucificado outra vez
E a gente corre na BR-3
E a gente morre na BR-3
Há um sonho
Viagem multicolorida
Às vezes ponto de partida
E às vezes porto de um talvez
E a gente corre na BR-3
E a gente morre na BR-3
Há um crime
No longo asfalto dessa estrada
E uma notícia fabricada
Pro novo herói de cada mês.”

BR-3: Música de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar


Cena de BR-3 no rio Tietê em São Paulo.

Existem pontos em comum em uma cidade planejada, uma cidade fronteiriça e um bairro periférico da maior cidade do país? Partindo desta indagação o Teatro da Vertigem iniciou a sua pesquisa em 2004 em busca da nova peça da companhia, o espetáculo BR-3.

O Teatro da Vertigem notabilizou-se por apresentar suas peças em espaços que fogem ao convencional. O espaço utilizado pode ser hora uma igreja (Paraíso Perdido, 1992), um hospital (O Livro de Jó, 1995) ou um presídio (Apocalipse 1:11, 2000). Antonio Araújo, diretor do grupo, acredita que a força dramática de seus espetáculos residem na potencialidade que os espaços inusitados trazem à encenação. Além disso, a forma como ele divide a autoria dos espetáculos com seus atores, dramaturgos e demais criadores merece destaque. O processo de criação é marcado por longas fases de pesquisa que servem de laboratório de experimentação para toda a equipe.

O mais recente trabalho do Teatro da Vertigem – BR-3 – foi o resultado uma extensa verificação dos pontos que marcam a identidade ou a não-identidade nacional de três lugares distintos, porém unidos por um mesmo radical – “BR”. Brasilândia, bairro periférico da cidade de São Paulo foi o primeiro local escolhido pelo grupo. Nesta localidade os artistas entraram em contato com a comunidade e tentaram entender como esses moradores se sentiam em relação à uma identificação nacional. O que pode ser percebido é que há um grande sentimento de não pertencimento por parte daquela comunidade num conceito macro de cidadania. Os habitantes desta comunidade sequer possuíam a noção de periferia, quiçá o de identidade nacional. Os artistas que se deslocaram para Brasilândia propuseram oficinas artísticas para os moradores com o intuito de tentar se inserir no pensamento e na vivência desta comunidade.

Bernardo Carvalho, dramaturgo do Vertigem, relata em seu texto “ Eu vivo neste mundo” o contato feito por ele, dentro da proposta de vivenciar o dia-a-dia de Brasilândia. A Bernardo coube a tarefa de visitar uma igreja evangélica local. Sua incumbência acabou culminando em uma das cenas mais interessantes de BR-3. Carvalho relata que ao entrar na tal igreja com a finalidade de apenas observar o culto e analisar o comportamento dos freqüentadores, acabou se envolvendo em uma situação inusitada. Ele acaba como o único espectador presente à celebração e é coagido de forma agressiva pelo pastor e a evangelista a se converter à religião.

“(…) Sempre achei que as igrejas evangélicas tinham vingado no Brasil por terem assumido o vácuo deixado pelo Estado entre os chamados excluídos. Nunca tinha me passado pela cabeça que a estratégia é a do medo e da coersão, a mesma usada pela igreja católica em meio a barbárie da Idade Média, sendo que agora nem precisava haver religiosidade. Quem entra em busca de acolhimento espiritual é recebido com ameaças. Do lado de fora estava ruim? Seja bem-vindo, aqui dentro não é diferente.
Eu estava irredutível. O pastor apelou: “Deus criou a autoridade. Não basta obedecer à polícia lá fora. Tem que obedecer ao pastor e à evagelista aqui dentro, representantes da autoridade de Deus”. Ou seja: este é o mundo do terror em que você sobrevive acuado entre a autoridade do tráfico, da polícia e da igreja. “Contra essas coisas não há lei.” Nem a quem recorrer.
Já fazia mais de uma hora que eu estava ali. O pastor me mandou fechar os olhos de novo. Me levantei e saí, enquanto ele praguejava:”Você não pode sair. Não fez a oferta!”.(…)”

O segundo passo do trabalho do Teatro da Vertigem foi percorrer, durante quarenta dias e mais de quatro mil quilômetros de estrada, cruzando o país unindo o três pontos investigados. O fim da jornada se deu em Brasiléia, cidade no interior do estado do Acre, fronteira com a Bolívia. Nesta localidade a trupe do Vertigem pode conhecer uma das regiões mais híbridas do país no que se refere à identidade cultural, tanto religiosa, quanto na língua esta região resiste a uma identidade estável. O ponto alto da viagem culmina no Centro Daimista Santo Alto de mestre Irineu, onde os atores e técnicos da equipe participaram de uma cerimônia do Daime.

Na passagem por Brasília, o destaque ficou por conta do que Bernardo Carvalho apontou como “ Disneylândia mística”. Isso porque a cidade é pontuada pela diversidade religiosa e por abrigar inúmeras seitas que cultuam desde a deusa greco-romana Diana até a mistura de candomblé com cultos indígenas.

Deste caldeirão de experiências ecléticas nasce a dramaturgia de BR-3. O local escolhido para a encenação, até mesmo para não fugir à característica do Vertigem, foi o leito do, poluído, rio Tietê em São Paulo. Sílvia Fernandes em “Cartografia de BR-3” a esse respeito aponta:

“(…) a ocorrência simultânea de diversas cidades no mesmo espaço urbano, procedimento que a dramaturgia de Bernardo Carvalho acentua no texto de BR-3 e a direção de Antonio Araújo intensifica no Tietê, ao criar uma espécie de heterotopia no percurso espetacular, justapondo uma série de lugares estranhos uns aos outros, estranhamento potencializado pela deterioração do rio. Brasília associada ao monumental e aos viadutos, Brasilândia abrigada sob as pontes e Brasiléia dispersa nas margens são espaços heterodoxos, forçados a conviver no mesmo leito-estrada, e absolutamente outros em relação às cidades reais a que se referem e de que falam. Filtrados pelo olhar coletivo e deformados por essa modalidade contemporânea de representação, fragmentária e explodida, tornam-se lugares de “desvio”, irreconhecíveis em sua identidade original.(…)”


O ROTEIRO DE BR-3

Temporada carioca de BR-3. Riocenacontemporânea 2007.


Jovelina, grávida de um filho, deixa o Nordeste para procurar o marido que trabalha na construção de Brasília, em 1959. Ao saber de sua morte no canteiro de obras do Congresso Nacional, e a conselho de uma médium local, Zulema Muricy, embarca em um ônibus com destino a São Paulo. Muda de vida e de nome, e em dez anos passa a ter o comando do tráfico no bairro da Brasilândia, agora sob o pseudônimo de Vanda. Tem dois filhos que se envolvem amorosamente em uma relação incestuosa, Helienay e Jonas, herdeiro dos negócios da mãe. Convertido por Evangelista, Jonas passa a ser membro da igreja local e se casa com uma fiel, com quem tem dois filhos, Patrícia e Douglas. Em 1980, Vanda é assassinada, em uma disputa familiar a mando do Dono dos Cães, um antigo policial interessado no controle da área e agora amante de Helienay. Jonas é preso e mantido no cárcere pelo pastor do bairro, comparsa do ex-policial, que lhe revela o destino da mãe e a suposta morte dos filhos em um incêndio criminoso, parte da mesma ação de extermínio de sua família, planejada para evitar uma possível vingança. No entanto, Evangelista descobre o cativeiro de liberta Jonas. Sem saber que os filhos foram salvos, ele parte para uma longa viagem pelo país e funda uma seita em um seringal nas proximidades de Brasiléia. Em 1997, dezessete anos depois de ser adotado e criado no estrangeiro, Douglas volta a Brasilândia à procura da família. Orientado pela Evangelista, parte em busca do pai na fronteira do Acre. Quarenta dias depois, sua irmã Patrícia foge de um reformatório e é forçada a cuidar de Helienay, agora drogada e decrépita, de quem ouve sua própria história. Ao saber da identidade de Patrícia, o Dono dos Cães, que tomara conhecimento das intenções de Douglas, decide matá-lo usando a irmã como instrumento. Convence a menina, que não o conhece de que o Dono dos Cães foi para a fronteira com o propósito de matar seu pai. Patrícia não sabe que o suposto matador é, na verdade, seu irmão Douglas. O reencontro de Douglas com os filhos é o desfecho da trama.



VISÃO PESSOAL DE BR-3



Os viadutos paulistas convertidos em Congresso Nacional.


Era uma noite fria de domingo na capital paulistana e estávamos lá, em frente ao Memorial da América Latina, no bairro da Barra Funda em São Paulo, um grupo de cerca de 100 pessoas a espera dos ônibus da produção do Teatro da Vertigem que nos levaria até o local da encenação da mais recente peça da trupe, BR-3. A expectativa era grande afinal, não é sempre que se tem a oportunidade de se assistir a um espetáculo dentro do rio mais poluído do país, o rio Tietê.
Aquela seria uma oportunidade única, pois seria a última apresentação de BR-3 em São Paulo, pois a produção não tinha condições de continuar a se apresentar no Tietê devido a problemas técnicos e orçamentários para manter a encenação.

O ônibus chegaram pontualmente no horário marcado. Embarcamos e a tensão aumentou, isso porque não sabíamos direito de como seria assistir a uma peça de teatro dentro de um rio. Teríamos que colocar os pés na água? Sentaríamos na margem do rio?
E a sujeira? E a poluição? O odor? Tudo isso passava pela minha cabeça no trajeto.
Chegamos em um pátio, no que parecia ser o local da administração do rio. Era um local deserto e escuro. Não dava para enxergar muita coisa.Descemos do ônibus e fomos “ abandonados” ali naquele local. Alguns minutos ali parados sem saber para onde ir e em seguidas escuto tiros ao que parece de revolver. Seria esse o início da peça? Como morador da cidade do Rio de Janeiro, a pergunta não me pareceu tão estapafúrdia. Para minha sorte era sim a apresentação começando. Fomos então encaminhados para uma embarcação que estava ancorada em um pequeno cais por uma mulher que se vestia tal qual uma executiva, ao menos era o que me parecia. Mais tarde fiquei sabendo que se tratava da personagem Evangelista. Entramos no barco e nos acomodamos nas cadeiras, mas isso era algo que seria impossível de fazer, se quiséssemos acompanhar a peça no seu todo.
As cenas ocorriam em todos os lugares. Na parte de frente do barco, nas laterais, no fundo e fora do barco, lógico.
As cenas eram todas conduzidas por um barqueiro em uma lancha que servia de “guia” para nossa embarcação. A cada nova cena, éramos posicionados em um novo cenário que se multiplicavam ao longo do rio. Fazíamos, ao meu ver, uma espécie de via crucis, pois a sensação que se tinha era a de estarmos passando por estações semelhantes às vividas na paixão de Cristo. Visualmente, os cenários eram muito bonitos, mesmo construídos com materiais simples, se encaixavam perfeitamente à encenação. Tudo contribuía para a grandiosidade da peça. Concordo com Sílvia Fernandes que diz em seu texto Cartografia de BR-3. Ela afirma que os detritos e a deterioração do Tietê, potencializam a ação dramática. É impossível ficar indiferente, em todos os aspectos, quando se está dentro do rio mais fétido e poluído do país. Tudo incomoda, até para narizes menos sensíveis o odor acaba por te incomodar em algum momento e esse elemento só reforça o clima que o Teatro da Vertigem quer instalar em seus espectadores. Mas mesmo assim, há algo de poético neste ambiente de degradação.
Outro dado que me foi extremamente marcante, foi a habilidade do ator que representava o barqueiro. Isto porque além de atuar, ele ainda tinha que se preocupar com a condução da embarcação.
Fiquei muito grato pela oportunidade de experienciar algo tão diferente do cotidiano teatral, O Teatro da Vertigem conseguiu fazer com que nos descolássemos do fato de estarmos dentro do rio Tietê e, através da sua montagem, nos transportar entre as três BRs. Mostra de competência e de Teatro contemporâneo da melhor qualidade.

Desembarque ao fim da apresentação de BR-3. Rio Tietê, São Paulo. Maio de 2006.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



CARVALHO, Bernardo de. Eu vivo nesse mundo. Teatro da Vertigem : BR-3. Org. Roberto Audio e Silvia Fernandes. São Paulo. Perspectiva, 2006.
FERNANDES, Silvia. Cartografia BR 3. Teatro da Vertigem : BR-3. Org. Roberto Audio e Silvia Fernandes. São Paulo. Perspectiva, 2006.
FERNANDES, Silvia. Notas sobre dramaturgia contemporânea. Teatro contemporâneo e narrativas. Revista O percevejo. Ano 8. N.9, 2000. Departamento de teoria do teatro, PPGT, Unirio.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Walking in No Man's Land

“Não sei resumir nenhuma das minhas peças. Não sei descrever nenhuma. Só sei dizer foi isto o que aconteceu, foi isto o que disseram, foi isto o que fizeram.”

Harold Pinter



No Man's Land (2007). By American Repertory Theater


Harold Pinter dirigindo No Man’s Land (2001).


Por Raphael Cassou



Este ensaio tem como propósito apontar algumas das características utilizadas por Harold Pinter na construção de sua linguagem dramatúrgica, usando como base o texto No Man’s Land.
Harold Pinter nasceu em 1930 em um subúrbio pobre de Londres, ao norte do Rio Tâmisa. Iniciou sua carreira artística como ator em 1950 sob o pseudônimo de David Baron. Em 1957 escreve sua primeira peça The Room. Ao todo já escreveu mais de 30 peças, roteiros e esquetes para teatro, cinema e televisão, que foram traduzidas e encenadas por todo o mundo. É um dos mais importantes renovadores do teatro moderno. Em 2005 foi agraciado com o prêmio Nobel de Literatura.
Segundo o editor e tradutor inglês, Eric Kahane:

"O teatro de Harold Pinter revela um universo singular, cómico e aterrador, feito de sub-entendidos, mal-entendidos ou puros equívocos. Nele observa-se, como se fosse ao microscópio, personagens que vegetam confusamente, de quem quase nada se sabe e que, de repente, explode num confronto em que as palavras são armas mortais. Estamos no reino do falso para se atingir uma verdade que é ainda mais falsa. As perguntas que se colocam não são aquelas que nos vêm à cabeça e a resposta, ou a recusa de responder limita-se a aumentar o abismo da incompreensão. O pudor torna-se violência, o sorriso ameaça, o desejo impotência, a vitória desfaz-se."

Através da leitura do texto Terra de Ninguém torna-se possível estabelecer certas nuances marcantes que caracterizam a dramaturgia pinteriana. A forma pela qual a introdução de pausas e silêncios exercem forte influência nas falas das personagens e servem de fio condutor das ações, é um bom exemplo.
Terra de Ninguém (No Man’s Land, no original) foi escrita em 1974 e produzida em 1975 por Peter Hall, sendo apresentada no Old Vic (então casa do Royal Nacional Theatre) e estrelada por John Gielgud, como o sórdido e calculista Spooner e Ralph Richardson como o recluso Hirst. Esta produção foi levada à Broadway em 1976 e filmada para a televisão no mesmo ano.
Sua maior remontagem foi em 1992, no Almeida Theatre (posteriormente transferida para o West End) e foi estrelada por Paul Eddington como Spooner e o próprio Pinter como Hirst.
Em 1994, Jason Robards ( conhecido no cinema por filmes como Todos os Homens do Presidente e Filadélfia) interpretou Hirst e Christopher Plummer (A Noviça Rebelde) no papel de Spooner. Esta montagem, dirigida por David Jones, valeu uma indicação ao Tony Awards para Plummer.
Em 2001, novamente no Nacional Theatre, Spooner foi interpretado por John Wood e Hirst por Corin Redgrave sob a direção de Harold Pinter.
Terra de Ninguém, foi levada à cena em 2007, nos Estados Unidos, pela American Repertory Theater, sob a direção de David Wheeler no Loeb Drama Center.
Este texto apresenta quatro personagens masculinos. Hirst, um homem de aproximadamente 60 anos, Spooner também da mesma faixa etária, Briggs, homem por volta dos 40 anos e Foster, com cerca de 30 anos. A ação se passa na sala da casa de Hirst, um escritor de sucesso que vive recluso e afastado do contato com o mundo exterior em uma espécie de retiro voluntário. Spooner vem a seu encontro na tentativa de convencer o outro a participar de um evento literário promovido por ele. O visitante é contemporâneo de Hirst, os dois foram colegas em Oxford na década de 30, entretanto Spooner não alcançou a mesma fama que seu anfitrião. Briggs e Foster aparecem como empregados de Hirst: o primeiro é uma espécie de empresário/mordomo e o segundo é um jovem aspirante a escritor que nutre uma grande admiração por seu patrão e que faz as vezes de assistente e secretário particular. A missão de ambos é justamente proteger Hirst das investidas do sórdido Spooner e de manter seu chefe em seu estado de reclusão, procurando de todas as maneiras afastar Spooner de seus intentos. Para Spooner retirar Hirst de seu contato com o mundo exterior significa ter a possibilidade de retomar a sua carreira literária e ele habilidosamente consegue, através de um jogo de palavras intenso, driblar Briggs e Foster. E é neste embate de palavras que se estabelece a relação entre Hirst e Spooner. Muito dos pensamentos e das falas daquele são desconexas; isso é mostrado de forma ambígua, pois em nenhum momento há a certeza absoluta de que os saltos de lógica de Hirst são de fato verdadeiros ou apenas um hábil jogo para afastar seu interlocutor. Essa ambigüidade é revelada pelo estado recorrente de embriaguez no qual se encontram as personagens ao longo da peça. Harold Pinter se utiliza de uma cena inteira com as simulações de Hirst, na tentativa deste em reconhecer a figura de Spooner como seu conterrâneo de Oxford. Spooner por sua vez joga Hirst em um extravagante e perigoso jogo de reminiscências. Uma das características mais marcantes desta peça é a grande quantidade de pausas e silêncios nas falas das personagens. Isto revela que a cada investida o que se diz é criteriosamente estudado, em um fluxo de consciência das personagens que com suas falas procuram atingir mais fundo o seu oponente. É notório durante toda a peça os “estados de alma”, os “fluxos de emoção” e a falta de lógica nas quais se encontram principalmente Hirst e Spooner. Este por querer levar adiante seus planos e aquele em manter-se firme em suas convicções. Em dado momento Spooner chega a implorar ao outro uma oportunidade, como é observado neste trecho:

Spooner (para Hirst): Deixe-me viver consigo, ser seu secretário.
Hirst: Anda aqui uma varejeira? Escuto um zumbido.
Spooner: Não.
Hirst:
Está a dizer que não.

Spooner:
Sim.

Pausa
.

Hirst:Peço-lhe...que me tome em consideração para o cargo. Se eu estivesse usando de fato como o seu, o senhor ver-me-ia sob uma luz diferente. Sou extremamente hábil com comerciantes, bufarinheiros, angariadores, freiras. Posso manter-me em silêncio quando desejado ou, quando desejado, ser sociável. Posso discutir qualquer tema à sua escolha – o futuro da nação, flores selvagens, os Jogos Olímpicos. É verdade que conheci tempo difíceis, mas minha imaginação e inteligência continuam intactas. O meu desejo de trabalhar não sofreu erosão...”

Na fala de Spooner observa-se claramente uma última e desesperada tentativa de conseguir alcançar seu objetivo, mesmo que isso signifique colocar-se à disposição de Hirst e servir-lhe como empregado. Spooner entende de que alguma forma sua carreira perdeu-se no tempo e ele enxerga em Hirst a possibilidade de retomar sua carreira. Em outro momento também é claro o “fluxo de consciência” de Hirst que reflete a respeito de sua condição e brinda a isso. Desta forma ele reafirma o seu status quo e conclui que a “Terra de Ninguém” é um estado de alma dele e que nada vai afastar-lhe deste caminho.

“Hirst: Mas eu escuto sons de pássaros. Não ouvem? Sons como nunca ouvi. Escuto-os tal como devem ter soado então, embora eles não soassem a nossa volta. Pausa.
Sim. É verdade. Caminho em direção a um lago. Alguém me segue, por entre as árvores. Despisto-o facilmente. Vejo um corpo na água, flutuando. Estou excitado. Aproximo-me e vejo que me enganei. Na água não há nada. Digo pra mim mesmo, vi um corpo a afogar-se. Mas estou enganado. Não há nada lá.
Silêncio.

Spooner:
Não. O senhor está em terra de ninguém. Que não se move, que nunca muda, que nunca envelhece, que permanece para sempre num gélido silêncio.
Silêncio.
Hirst:
Bebo a isso.

Bebe.”

O diálogo final da peça, como demonstrado acima, apresenta a maneira dúbia com que Pinter encerra seu texto, pois não é revelado qual será o destino de Spooner, ou mesmo o de Hirst.
Com Terra de Ninguém, Pinter reafirma suas características como autor dramático, pois mais uma vez confronta o confinamento de suas personagens a determinado espaço. Apesar da didascália inicial apontar uma sala ampla, o que se vê durante o desenrolar da ação é um ambiente extremamente claustrofóbico.
Outro ponto a se destacar na dramaturgia de Harold Pinter é o veto pela decifração: não existem verdades absolutas e, mais ainda, em Terra de Ninguém existem enigmas que não necessariamente precisam ser mostrados, nem tão poucos explicados ou esclarecidos. É característico das duas personagens principais uma valorização do passado, mas isso não define o caráter destas.
Um artifício marcante na dramaturgia pinteriana é o uso recorrente das pausas e silêncios como marca, este recurso faz com que as personagens reflitam muito antes de se expressar, cada palavra é cuidadosamente dita. A este respeito, Mireia Aragay, em seu texto Harold Pinter: Teatro, linguagem, política afirma:

“O diálogo e sua ausência – os silêncios e as pausas – constituem um campo de batalha em peça como The Room (1957), The Birthday Party (1965) ou No Man’s Land (1975), há uma luta ou negociação verbal permanente e frequentemente dolosa. Qualquer coisa que diga – ou se cale – um personagem de Pinter se encontra submetido a este princípio de poder, ao qual significa que pouco importa se é certo ou não: não se trata de verificar seu valor referencial – sua relação com a realidade, com a verdade – mas de explicar o que poderíamos chamar de sua carga pragmática, aquilo que, como afirma Pinter, sublinha a fala.”

Sobre as motivações que movem as personagens de Pinter, Martin Esslin em seu livro Teatro do Absurdo escreveu:

“É o problema da possibilidade de jamais sabermos qual é a motivação real por trás das ações de seres humanos complexos, cuja constituição psicológica é contraditória e inverificável. Umas das grandes preocupações de Pinter como dramaturgo é justamente a da dificuldade de verificação.”

O próprio Harold Pinter diz a respeito desta sua maneira de construção dramática:

“Sinto que em lugar de incapacidade de comunicação o que existe é a procura deliberada de evitar a comunicação. A comunicação entre homens é em si tão apavorante que para evitá-la há um pensamento em jogo de disparates, uma permanente mudança de assunto, que são considerados preferíveis o que está nas raízes de suas relações.”

Harold Pinter, como na maioria de suas peças, nos presenteia com personagens que se revelam aos poucos e de forma incompleta e que exprimem em suas falas aquilo que lhes vêm à mente de forma inconsciente na aparência; revelam verdades que nem sempre gostaríamos de ouvir e que espelham a vida real tal como ela se apresenta; muitas vezes com requintes de crueldade.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PINTER, Harold. Relógio D’água – Teatro III, Terra de Ninguém, p.112-113.
ESSLIN, Martin. Teatro do Absurdo. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 3ª ed. 1968, p. 251-252.
ARAGAY, Mireia. Harold Pinter: Teatro, lenguaje, política, ADE Teatro, p. 44.
http://www.haroldpinter.org/home/index.shtml http://www.artistasunidos.pt/harold_pinter.htm